segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Dois dedos de prosa com Pe. Antonio Vieira, Veja Sermão da 5ª dominga da quaresma



Verdade & mentira

Padre Antônio Vieira


... Estive considerando comigo que verdades vos diria e segundo as notícias que vou tendo desta nossa terra, resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será esta? Não gastemos tempo. A verdade que vos digo, é que no Maranhão não há verdade.Cuidavam e diziam os sábios antigos que em diferentes ilhas do mundo reinavam diferentes deidades; que, em Creta, reinava Júpiter; que, em Delos, reinava Apolo; que, em Samo, reinava Juno; que, em Chipre, reinava Vênus e assim de outras. Se o Império da Mentira não fora tão universal no mundo, pudera-se suspeitar que nesta nossa ilha tinha sua Corte a Mentira. Todas as terras assim como têm particulares estrelas, que naturalmente predominam sobre elas, assim padecem também diferentes vícios a que geralmente são sujeitas. Fingiram a este propósito os Alemães uma galante fábula. Dizem que, quando o Diabo caiu do céu, que no ar se fez em pedaços e que estes pedaços se espalharam em diversas províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam, a cabeça do Diabo caiu em Espanha e que por isso somos fumosos, altivos e com arrogância graves. Dizem que o peito caiu em Itália e que daqui lhes veio serem fabricadores de máquinas, não se darem a entender e trazerem o coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha e que esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que os outros com a mesa e com a taça. Dizem que os pés caíram em França e que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados no andar e amigos de bailes. Dizem que os braços com as mãos e unhas crescidas, um caiu em Holanda; outro, em Argel e que daí lhes veio ou nos veio o serem corsários. Esta é a substância do Apólogo, nem mal formado, nem mal repartido, porque, ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem, contudo, a semelhança de verdade, que basta para dar sal à sátira. E, suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca, ao nosso Portugal, a língua: ao menos assim o entendem as nações estrangeiras, que de mais perto nos tratam.


Os vícios da língua foram tantos que fez Dreagelio um abecedário inteiro e muito copioso de A a Z. E, se as letras desse abecedário se repartissem pelos Estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M... M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e, sobretudo, M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente. [...] De maneira que o sol , que em toda parte é a regra certa e infalível, por onde se medem os tempos, os lugares, as alturas, em chegando à terra do Maranhão, até ele mente. E terra onde até o sol mente, vede, que verdade falarão aqueles sobre cujas cabeças e corações ele influi? [...]porém as mentiras do Maranhão não têm nem outra parte donde vir, nem outra parte para onde ir: aqui nascem, e aqui ficam. E, quando as mentiras todas ficam na terra e todas vos caem em casa, ainda que por conveniência e razão de estado, as haveis de lançar fora. E, se não, fazei-me por curiosidade duas contas, as quais eu agora não posso fazer. Uma é: quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? A outra: quantas casas há nesta cidade? Logo reparti as mentiras e vereis quantas cabem a cada casa. E que será em uma semana, que será em um mês, que será em um ano?


(PEIXOTO, Afrânio & ALVES, Constâncio. Vieira


Brasileiro II. Paris – Lisboa : Livrarias Aillaud e Pertrand. Porto: Livraria Chardron & Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1921, p.17-39)


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